quarta-feira, janeiro 09, 2008

Tem poesia aqui, Marli

Fechou. Eu aproveitei pra descer e atravessar a rua bem rápido, antes que o outro lado do cruzamento começasse a chover aqueles carros todos. A avenida era só mais uma dessas grandes, em cidades grandes, com trânsito o dia inteiro e movimento razoável tarde da noite. Comigo, no ponto de ônibus, dois caras distraídos e um casal mais afastado, à doutores de alegria, se amassando numa árvore dessas normais em avenidas grandes, em cidades grandes.


O mais gordo dos dois caras apanhou logo um ônibus. Em frente ao tal ponto estacionou em seguida um carro largo, pisca-alerta cumprindo o seu papel, e eis que dele me sai um cara de macacão prateado com uma logomarca esquisita na nuca, duas palavras quaisquer em inglês, e abre à chave o porta-malas sem a menor pressa. Dois baldes, dois panos e aquela vassoura caduca e careca. Rodo. Até aí eu ainda não prestava atenção e continuava a olhar puto pro relógio da esquina - mais um desses sádicos, que insistem por quarenta segundos na merda da temperatura antes de só confirmarem que você está de fato atrasado e que a mesma desculpa mulambenta, Monique, mais uma vez, não vai colar. Respirei fundo.


E dei aquela olhada em volta. O ponto de ônibus era daqueles com um vidro enorme, estrutura grande de ferro escuro e cartazes de peças de quinta, pregados em vitrines iluminadas por lâmpadas de banheiro. Típico ponto de ônibus grande de uma cidade grande, logo em frente a um restaurante. O vidro. O vidro já estava completamente encharcado e cheio de espuma branca, aumentando além da conta aquele friozinho que bate com vento gelado na rua, depois da meia noite. Eu já quase me arrependia por não prestar atenção no sabe lá como aquele cara molhou e ensaboou aquela vidralha toda, mas essa hora desistiu do silêncio. Foi quando começou o concerto.


Com c.


O rodo fazia e repetia um mesmo caminho, sob a mesmíssima velocidade, e não deixava nenhum senão nem seco, nem sujo. O outro cara, o de preto, que também devia estar tentando esperar um ônibus, acompanhava atento os lentos movimentos verticais, mexendo de vez em quando a cabeça, enquanto eu me concentrava quase tenso nas linhas tortas que ele fazia, paralelas ao chão, mais uma vez. Volta e meia acontecia do cara de preto olhar em volta, meio a segurar um sorriso criançola, criando um palíndromo e concluindo gerúndio que eu provavelmente estaria pensando, e literalmente, no seguinte óvbio: “Caramba, eu nunca parei nem pra considerar que existisse um cara especialmente dedicado à limpeza de pontos de ônibus". Mesmo em cidades grandes.


E eu pensava exatamente no mesmo de volta, aí nasceu o cacófato corno do palíndromo fado. Podia-se chamar sem culpa aquele artista de elegante, doutor em aula de elegância, também e justamente pelo fato d’ele saber que era inegavelmente assistido e, assim mesmo, não se distrair em nenhum momento e cumprir seu papel muito além da simples faxina. Ele era nem maestro, sabia também e não pouco de coreografia. Nós dois, envergonhados, meio cansados de olhar para os lados, já quase parávamos de assistir e procurávamos a merda do relógio para disfarçar, quando enfim chega aquela mulher.

Tinha poesia ali, Marli. Antes que eu explique:

Um comentário:

Anônimo disse...

Saudade de quem me odeia. Beijo na ponta do nariz.